Aventuras do Boneco Rebelde

Contribuir com edições para a construção de uma memória, e ao mesmo tempo para que momentos da história da banda desenhada portuguesa não se percam, é louvável e de indiscutível valor. Quer por questões culturais ou não, a nossa memória da bd portuguesa parece ser muito curta e imperfeita, principalmente no que diz respeito a personagens e autores só editados em jornais e revistas. A colecção Bedeteca, editada pela Bedeteca de Lisboa e pela BaleiAzul, quer contrariar isso dando o exemplo e preservando obras que doutro modo se perderiam nessa construção nada linear que é a história.

Neste livro estão reunidas pela primeira vez as Aventuras do Boneco Rebelde, publicadas entre 1938 e 1943 n’ O Papagaio, uma criação meteórica de Sérgio Luiz que corria o risco de cair no esquecimento. Sérgio Luiz iniciou as aventuras do Boneco com apenas 17 anos, morreu aos 22 deixando um vazio no “coração dos amiguinhos” que liam as aventuras do Boneco, e uma obra singular para a história da bd portuguesa pela qualidade daquilo que produziu em tão pouco tempo. Desenhador prematuro, teve aquilo a que se chama uma evolução rápida, em pouco tempo foi capaz de abandonar o lado juvenil do desenho a favor duma certa maturidade, bem visível nos fundos e personagens de apoio. No entanto, nesses quatro anos o Boneco parece ter sido o único que não ganhou com a evolução, continuando com braços esguios, cabeça macrocéfala, botas monstruosas e calvície precoce. Opção ou não, isso não sabemos, porque talvez Sérgio Luiz, como qualquer outro bom autor de bd, tivesse a percepção real de que o Boneco era alguém de quem todos gostavam, e que por isso mesmo não deveria sofrer alterações significativas. Cuidado e atenção com os leitores, portanto. A explicação da popularidade do Boneco não se esgota no desenho, para ela contribuíram os divertidos e engenhosos argumentos. Não precisam de defesa nem duma qualquer interpretação mais profunda, porque estão bem construídos e resolvidos. Funcionam, mesmo hoje, à distância de 56 anos e para qualquer leitor.

A um livro deste género, onde se reúne, ordena e trata um pedaço de história da nossa bd, é exigido um trabalho apurado e meticuloso, trabalho ao qual tanto João Paiva Boléo como Carlos Bandeiras Pinheiro não fugiram, dando ao autor e personagem a importância e dignidade que merecem. Tudo foi tratado com sentido crítico, porque o afecto que João Paiva Boléo e Carlos Bandeiras Pinheiro sentem pelo personagem não é feito de saudosismo, mas de uma saudável relação memorial com o Boneco Rebelde. Sabendo que há preocupações e motivações de análise e de juízo determinadas pela relação subjectiva que uma geração tem com uma obra, evitaram o discurso saudosista, muitas vezes usado entre nós para preencher os espaços que existem entre os factos. Dessa forma, João Paiva Boléo e Carlos Bandeiras Pinheiro evitaram também uma certa instrumentalização de que muitas vezes autores e personagens desta época (a de ouro, dizem) são vítimas, onde valor sentimental não é mais do que uma atribuição, uma elaboração adicionada ao objecto artístico e a brevidade e singeleza da obra não justificam tal coisa. Sem elaborações de qualquer espécie, apenas com afecto, o que é aceitável e não fica mal, esta avaliação do Boneco Rebelde e da vida de Sérgio Luiz é bem vinda.

A edição no todo, estudo introdutório mais o cuidado posto na reprodução, servirá de exemplo em estudos futuros, tanto mais que deu uma nova vida ao Boneco. A isso chama-se fazer história dentro da história.

Aventuras do Boneco Rebelde
Sérgio Luiz
Organização e Estudo Introdutório de Carlos Bandeiras Pinheiro e João Paiva Boléo
Bedeteca de Lisboa – 152 pp, Cor

Texto publicado na revista Quadrado, Volume 3, Nº1, Janeiro de 2000.