The Smartest Kid On Earth

É muito complicado abordar o trabalho de Chris Ware, primeiro porque é um trabalho único, e depois porque é inevitável ter a tentação de não parar de falar sobre ele. O lado visual de Ware tem origem nos grandes clássicos de bd americana dos anos 30, 40 e 50, mas não estamos a falar apenas da bd e animação, mas também de publicidade e artes gráficas do final do século XIX até aos anos 20, daí a afectividade e o prazer nostálgico que sentimos quando pegamos num dos livros de Chris Ware.

Cada Acme Novelty Library representa um intenso e aturado trabalho de memória que tem como último objectivo convocar todas as partes que dão corpo à cultura popular americana dos últimos anos num só objecto, o livro. Um ponto de reflexão interessante, porque a impressão que temos quando pegamos num dos livros de Ware, e esta é minha, é que estamos não só a pegar num objecto, mas também a manipular um pedaço de memória.

O importante, aqui, é pensar que Ware não se limita a mimetizar ou fixar essa memória, é que ele trabalha com ela e sobre ela, faz dela aquilo que é esperado: Expande-a. Um fenómeno que não acontece apenas no exterior, já que estamos perante uma daquelas obras com um conteúdo fortíssimo.

Antes disso, e porque o desenho e a técnica sequencial estão primeiro, será necessário dizer que eu não vejo em Ware vestígios de pós-modernidade (para quem não sabe: Explosão de práticas artísticas em todos os sentidos, por oposição às teorias unitárias do passado), porque não há grandes desvios, muito menos experimentais.

Olhando com atenção para o trabalho de Ware, verificamos que ele é sempre feito dentro do meio, dominando a força da técnica sequencial, limitando-se quase exclusivamente a usar as regras mais elementares, ignorando qualquer aproximação formal a outros meios e evitando simular ou absorver propriedades alheias que contaminem o género.

Apesar do ritmo da composição das páginas ser musical, e essa composição resistir a sequências dentro de sequências, como se tratassem de pequenas peças de uma grande máquina, continuamos perante a celebração do meio e dos seus mecanismos primários, sem grandes embaraços ou complexos artísticos.

Uma ideia que é contrária no caso do argumento, intenso e camaleónico, numa estrutura que revela ser a ideal para suportar a dureza dos temas, como a falta de amor próprio e a dificuldade em gerir relações afectivas, geridos por um personagem principal que é um poço humano sem fim à vista, Jimmy Corrigan. Incapaz de se definir emocional e intelectualmente, daí o subtítulo The Smartest Kid on Earth, Jimmy Corrigan aplique esse mesmo princípio de indefinição a tudo, ao trabalho, ao pai e a Amy.

Jimmy, até determinado ponto, é parecido com Ulrich de O Homem Sem Qualidades de Robert Musil, porque os dois, Ulrich e Jimmy, encaram o mundo como um campo de possibilidades, por outras palavras, têm uma visão da vida hiper-desenvolvida, vivem na subjectividade total, e como tal são incapazes de tomar uma decisão, seja ela emocional ou outra qualquer.

A grande diferença entre os dois, é que Jimmy não tem consciência (ou inteligência) suficiente para perceber que pode tomar uma decisão, enquanto Ulrich simplesmente não quer tomar uma decisão (é isso que faz dele um homem sem qualidades). Ou seja, enquanto Ulrich não quer encontrar a vida, Jimmy não consegue encontrar-se a si próprio.

Outro dado curioso é que Ware conseguiu reforçar algumas características do personagem colocando-o sempre em ambientes extremos, ou demasiado abertos ou demasiado claustrofóbicos, quando ele está no exterior os outros têm sempre a razão, ele é que vacila, ele é que é o falhado, mas quando está no interior Jimmy tem mais dúvidas, adivinha mais possibilidades, porque também é dentro dele que está o problema.

Voltando ao argumento, a trama é semelhante a um clássico: A Odisseia de Homero, Jimmy como Telemachus também procura o pai, no entanto, Ware afastou-se do peso que Homero deu à relação Pai/Filho, com todas as consequências emocionais e físicas que daí podem advir, e aproximou-se dum moderno: Ulisses de James Joyce, onde Stephen Dedalus também procura o pai, uma figura paternal com a qual não conseguem lidar, muito menos suportar.

Stephen deseja combater e anular a figura paternal que transporta dentro de si, enquanto Jimmy não se cansa de tentar a reconciliação emocional, ainda que esta seja sempre forçada, adiada e desoladora. Uma trama que se desenvolve sem uma ordem cronológica e lógica aparente, num fluxo constante e muitas vezes brusco entre os pensamentos de Jimmy e as conversas que ele tem com outros, levando-nos não só a criar uma terceira imagem (pela justaposição) como uma terceira ideia (adivinhamos qual é a vida interior de Jimmy). Apesar da importância do pai na vida de Jimmy, a minha atenção volta-se para outro personagem que nunca o abandona e com a qual mantém uma relação intensa, o Super-homem.

Uma das minhas passagens preferidas, 7 a 8 do nº. 5, é aquela em que Jimmy antes de se sentar na sua secretária encontra e lê esta mensagem: “I sat across from you for six months and you never once noticed me”. A primeira reacção que tem é olhar para a secretária que está do outro lado, estando vazia ele acaba por olhar para a janela, no telhado do edifício em frente está um super-homem a acenar, ainda que hesitante Jimmy também acaba por acenar-lhe. Virar a página. O Super-homem prepara-se para voar, flecte as pernas, mas acaba por cair no chão, morto.

Esta queda deixa duas dúvidas 1. ele está a acenar-lhe cumprimentando-o ou despedindo-se? 2. ele flecte as pernas para voar ou para se suicidar? A minha resposta à 1. e à 2. é: parece-me que ele estava a acenar-lhe um adeus, era capaz de jurar que ele está magoado com Jimmy, porque a verdade é que Jimmy nunca olhou para ele, um caso sério de amor platónico com desfecho trágico: O suicídio.

Todos sabemos, desde que Umberto Eco escreveu sobre ele, que o Super-homem é um personagem que vive num tempo suspenso, uma espécie de presente interminável, onde todas as suas decisões são desligadas do passado e tudo o que delas resulta não tem consequências visíveis no futuro. Sem a noção de tempo, sim: passado, presente, futuro, o Super-homem não se conhece a si próprio, daí que esta passagem seja memorável porque é a primeira em que vemos um Super-homem responsável, capaz de tomar uma decisão sabendo quais são as consequências.

A provar isso mesmo, está o tempo que Ware imprimiu ao que se segue depois do salto: um Super-homem estendido no chão, sem que ninguém o socorra, à chuva durante mais duas páginas, até que vem uma ambulância buscá-lo.

Eu não sei bem porquê, ou melhor, até sei, mas seria uma explicação demasiado longa, mas não consigo deixar de olhar para estas páginas e pensar numa fotografia que Burt Glinn tirou a Christopher Reeve durante as filmagens de Superman II (1980), em que lá ao fundo está Reeve/Super-Homem, entre cortinas, pedaços de madeira, cabos e holofotes, pendurado por uns fios, com o corpo muito hirto e de cara séria, ameaçadora demais para quem está pendurado em fios de aço que a qualquer momento podem partir-se.

Há ainda outra passagem com um Super-homem em Acme Novelty Library que é memorável, 5 a 14 do nº. 10, onde ajudado por ele Jimmy chega a uma ilha deserta, depois deste ter agredido o pai e naufragado. Aqui aparece-nos o Super-homem enquanto entidade reguladora da sociedade, aquele que elimina o mal para que exista só o bem, ou se quiserem, a normalidade. O problema é que este Super-homem está demasiado viciado no seu próprio papel, tanto que a capacidade de ajuda que tem só funciona estimulada pelo sofrimento dos outros, por isso mesmo é que ele abandona Jimmy e só volta quando este não aguenta mais.

Moralista e sádico, ele quer que Jimmy perceba à viva força que tem de crescer, e não há nada melhor do que uma experiência dolorosa para que isso aconteça, ou seja, fazer o mal para atingir o bem, porque só assim é que a vida do Super-homem faz sentido. Há ainda mais qualquer coisa a retirar desta passagem, principalmente quando o Super-homem, esmagando uma das mãos de Jimmy, grita –“You’ll get your turn someday, Jimmy, but now it’s our turn! Our turn!”, como se estivesse a querer dizer-lhe que este tempo da bd que vive na ausência do tempo e da realidade, feita de personagens inconscientes e aprisionadas à ideia de mito, ainda estivesse para durar.

Jimmy, e outros como ele, terão um dia a sua vez, mas nada de ressentimentos Super-homem, ainda que a população te receba de braços abertos, como as criancinhas na praia à chegada do salvador.