A figura e a obra de Hergé é de incontestável importância para a história da bd europeia e mundial. Qualquer autor terá pelo menos uma opinião sobre o estilo, as histórias e personagens que Hergé deixou como legado, seja qual for essa opinião, ela será favorável ou apaixonada. Por outro lado, são poucos aqueles que nunca leram as aventuras de Tintim, mesmo que tivesse sido um só álbum, o que prova que mais do que banda desenhada Hergé deixou um personagem excepcional, Tintim.
Sabemos que Tintim terá uns dezasseis anos, popa arrebitada, calças de golfe e que apesar de ser jornalista nunca o vimos preocupado com um prazo ou sequer em escrever uma notícia, e muito menos com o sexo feminino. Ingénuo nesse aspecto, mas corajoso e verdadeiro amigo do amigo, Tintim é um paradigma: nunca existiram rapazes como ele e nunca existirão. Então, porque é que se gosta de um rapazinho assim? Ninguém sabe.
Além de viajar muito de um país para outro, Tintim tem outra capacidade, a de viajar de uma geração para outra, numa dentro de livros e noutra nos bolsos das camisas ou T-shirts. Ao vermos que ao poucos o merchandising deixa para trás a leitura, será esta a altura certa para olharmos noutra direcção e perceber donde é que veio afinal Tintim? Talvez sim, ou talvez não, mas seja como for Tintim tem 70 anos e só por isso valerá a pena escrever sobre ele. Pena é que não há muito mais a saber sobre ele, o mesmo não se pode dizer do seu criador. Dele, de Hergé, sabemos que era um tipo neurótico com ataques constantes de mau génio, perfeccionista ao limite capaz de redesenhar obras inteiras, depressivo quando as dúvidas abalavam certos valores morais, colaboracionista para uns e vítima das circunstâncias para outros, tirano no trabalho mas sempre acompanhado com reverência, casado mas capaz de se apaixonar aos 53 anos por uma miúda de 21. Isto é o que sabemos, ou percebemos, através das inúmeras biografias de Hergé, porque através das raras entrevistas que deu ao longo da vida pouco ou nada sabemos realmente do homem. As questões que mais fazem agitar qualquer discussão sobre Hergé são sempre as mesmas: seria Hergé um colaboracionista? Foi um anti-semita ou um racista? Ou as duas coisas? A resposta a todas elas é muito simples, não. Hergé foi, mais do que qualquer outra coisa, um daqueles tipos que soube tirar partido de todos os períodos históricos pelos quais passou, um daqueles sujeitos que soube moldar-se ao que estava a acontecer.
Os exemplos que se seguem não são exaustivos, mas sim exemplificativos:
1. Numa entrevista Hergé considera “dever tudo” a Wallez, um partidário do nacionalismo de Charles Maurras e admirador de Mussolini, e director do Vingtième Siècle, jornal católico e nacionalista, que omitia qualquer referência a actos condenados pela igreja, como o adultério, mas atacava comunistas e judeus. Não querendo defraudar as expectativas de Wallez, e porque o tema foi sugerido pela direcção do jornal, Hergé em Tintin au Congo, 1931, confere a Tintim a característica de “grande pai branco”, protegendo uns negros receosos e ingénuos, mas igualmente simpáticos e merecedores de alguma compaixão paternalista. O objectivo de mostrar aos leitores as virtudes do colonialismo é atingido, porque num período onde as colónias eram ainda tidas como um valor seguro, a visão de Hergé, mesmo sendo racista, era comummente aceite culturalmente à altura e, mais uma vez, não defraudavam as expectativas de Wallez.
2. Em 1932 Wallez é despedido e o jornal Vingtième Siècle faz uma pequena inflexão no percurso, assumindo um carácter mais neutro. Embrião daquilo que levaria este jornal a ser considerado um dos grande da história da imprensa. Hergé segue essa nova direcção, daí até 1939 as aventuras de Tintim não têm nada que se possa considerar menos correcto. Há mesmo, em 1936, com Le Lotus Bleu, um jovem Tchang a servir de inspiração e modelo. Com a guerra os alemães passam a controlar o Le Soir, Hergé não se sente muito incomodado, tanto que em L’Etoile Mystérieuse, 1942, dá a sua própria contribuição para a fogueira do anti-semitismo com a acha Blumenstein, um banqueiro judeu de quem se pode esperar tudo de mau. Se até aqui as posições de Hergé em relação a uma ideologia e a uma prática em particular eram dúbias e perfeitamente discutíveis, agora deixam de o ser: faz parte de um jornal “alemão” e cria um personagem odiável que é judeu. Hergé está do lado errado e na hora errada, pelo menos para os compatriotas. É a partir deste álbum que Hergé, o grande pai do desenho europeu, é tido como um colaboracionista. Nem mais nem menos. O que não o impede de continuar a desenhar as aventuras de Tintim.
3. No período de 1942 a 1945 será pertinente perguntar, porque é que depois de Blumenstein, Hergé não voltou a deitar mais achas para a fogueira do anti-semitismo? A resposta, plausível e possível, é a de que Hergé terá pago aos alemães, com a moeda Blumenstein, a continuação de Tintim. As contas estavam feitas, não havia mais nada a pagar.
4. O período do pós-guerra é difícil para Hergé, no entanto, a popularidade de Tintim ajudou-o, porque no final do julgamento o juiz considerou que “seria ridicularizado” se considerasse Hergé colaboracionista. Mesmo assim tomou algumas medidas, deixando-o publicar em álbum e proibido-o de publicar nos jornais durante três anos. A fundação da revista Tintim, com a ajuda de Raymond Leblanc, um herói da resistência, parece indicar que o pior passou. Na recesão económica e austeridade que a Europa atravessa há falta de muitas coisas, uma delas é o papel. Esse é o motivo pelo qual as histórias passam a ter 62 páginas. Desta vez Tintim não só se adapta aos tempos que correm, mas a um novo formato.
5. Algumas depressões e oito anos depois Hergé termina Tintin au Pays de L’Or Noir, 1951, ano em que funda o Estúdio Hergé. Além de ser um estúdio de banda desenhada, é também o local onde são elaborados os contratos para edições no estrangeiro, merchandising, publicidade, animação e etc. É aqui que começa o processo de industrialização de Tintim, acompanhando a recuperação económica mundial e o reconhecimento sociológico de uma terceira cultura, a cultura das massas. Que é “cosmopolita por vocação e planetária por extensão”, definição que também poderia ser aplicada a Tintim.
6. O casamento de Hergé com Germaine não corre nada bem, na origem está a paixão que sente por Fanny Vlamynck, uma desenhadora de 21 anos que trabalha no estúdio. Esta paixoneta, e o lado introspectivo de Tintin au Tibet, 1960, correspondem a uma crise de meia idade. Afinal, Hergé tinha 53 anos. A provar que tudo não passa de uma crise, o casamento dos dois resiste mais 17 anos até ao divórcio.
7. Com Vol 714 Pour Sidney, 1968, assiste-se a um esforço patético de Hergé para acompanhar a época. Falhanço redondo. Com Tintin Et Les Picaros, 1976, tenta-se retomar a velha fórmula. Duplo falhanço. Hergé estava cansado e velho, surgindo Le Bijoux de La Castafiore, álbum hermético para uns e simples sintoma de senilidade para outros. Entre uma opinião e outra, apenas podemos considerar que este foi o ajuste de contas possível que Hergé pôde fazer com Hergé. Antes deste, só o já citado Tintin au Tibet.
Depois disto, e em poucas palavras, Hergé soube atravessar tudo. Se quisermos continuar a discussão, no mínimo poderíamos chamar Hergé de oportunista, no máximo de mercenário, mas aí estávamos em pleno delírio provocador, um excesso desnecessário. O meio termo é difícil de encontrar, ou de definir numa só palavra, mas podemos concluir que para Hergé só houve uma preocupação: Tintim.
Biografia a ler:
Hergé
Pierre Assouline
Plon
Pierre Assoulin, director da revista Lire, teve acesso aos arquivos pessoais e profissionais de Hergé. Está disponível em espanhol, com o mesmo título, pela Ediciones Destino Áncora e Delfin.
Texto publicado na revista Quadrado, Volume 3, Nº1, Janeiro de 2000.