Encruzilhadas

Viajar é, entre muitas outras coisas, estar de passagem, por isso, o viajante é alguém que tem a possibilidade de ouvir histórias e confissões que de outra maneira não seriam feitas, um confessor ambulante. Um confessor que tem a vantagem de não pertencer a uma teia de relações sociais, ou cumplicidades mundanas, e não é obrigado a guardar segredo.

Crossroads é um livro sobre uma viajem aos Estados Unidos feita por Samuel Pastor, alter-ego de Severino Nunes, um contabilista reformado e bom confessor, mas um mau viajante, nunca lá foi, apenas saiu do país para visitar «Badajoz, integrado numa excursão da Sociedade Recreativa». Tendo feito um livro de viagens sem viajar, e sendo obcecado pelos anos 50 e 60 da história dos Estados Unidos, com incidência nos automóveis desses anos, estamos perante um mitómano. O que não é mau de todo, convenhamos.

Para quem não sabe, o meu avô coleccionava carros dos anos 40 e 60, não necessariamente americanos, mas com uma predilecção pelos Ford da década de 40. Década mágica, como ele costumava dizer, em que a companhia produziu os modelos mais elegantes, sensuais e a preços módicos. Americanos de motor e preço, com os quais eu perdia algum tempo na garagem da casa dele, tentando não estragar mais do que o desejável e dando uma mãozinha na reconstrução de vários modelos: um Convertible de 46, com 100 cavalos de potência e pistões de alumínio; um Town Sedan de 47, da divisão Mercury, com uma grelha metalizada monstruosa e carroçaria em duas cores; um 1949, com ventilador Equa-Flo e tubulação Deep-Breath, capaz de não assustar as vacas, mas muito parecido com a Yma Sumac nas curvas.

Ainda o ajudei noutros, poucos e que não eram Ford: um Austin A70 Hampshire, antigo recorde de 32 dias entre Londres e Cidade do Cabo; um Kaiser de 1951, à altura o carro com o maior vidro da frente; um Frazer, pós-guerra mas nada afectado pelo styling; um Studebaker Land Cruiser, Cruzeiro Terrestre para o meu avô, o primeiro a ter estofos em nylon; e para terminar, um Isetta de 1954, minúsculo e equilibrado, consumia o mesmo que uma scooter! Cheguei aos 15 anos farto de reconstruções e com dois estigmas: 1. uma noção diferente daquilo a que se chama o «coração» do automóvel, coisa de maricas isso do coração, porque no motor há uma infinidade de peças fantásticas, como por exemplo: carter, segmento de compressão e raspador de óleo, tampa de balanceiros, sangradouro de circuito de água, câmara livre, polie da cambota e um longo etc, e 2. a frase There’s a Ford in Your Future!. Ficou retida na minha memória para sempre, como uma fatalidade à qual talvez eu não escaparia.

Cheguei ainda à conclusão, através desses estigmas, que viajar de automóvel é uma experiência memorável quando se tem uma imagem mental de tudo a funcionar na perfeição, uma conclusão que não era minha de todo, foi-me incutida pelo meu avô. Aquilo que partilhei com ele retirou-me todo o sentido crítico, principalmente depois de o ouvir exclamar quando um motor trabalhava pela primeira vez depois de anos e anos em silêncio absoluto, «Deus acordou!» Samuel Pastor, vulgo Severino Nunes, não teve essa experiência, deixou ficar uma carcaça dum Buick no quintal, o que mostra que afinal não prezava assim tanto os automóveis porque ninguém, repito, ninguém, deixaria morrer assim um Buick! Excepto aquele outro, o tal que impediu que em 1970 utilizassem a música num anúncio televisivo, teria ficado assim: Come on, Buick, light my fire!

Isto de automóveis é muito, muito complicado, se uns desenvolvem a obsessão de falar neles, há outros que escrevem sobre eles, estabelecendo uma ligação estreita entre carro e sexo, J.G. Ballard, e poesia, Will Self, e alienação, Martin Amis. Muitos exemplos poderiam ser dados, todos eles olhando para o automóvel como um confessionário, como um pretexto para escrever. Samuel Pastor, vulgo Severino Nunes, vulgo João Lameiras, vulgo João Ramalho Santos, preferiu fabricar pedaços de confissões que nunca se chegam a completar, em parte por que são breves, em parte porque esse final de tarefa é atribuído às ilustrações. Valia bem a pena que tivessem sido mais abertas e menos circunstâncias estas confissões americanas, ou crónicas americanas, tão próximas que estão das de Sam Shepard. Com isto que acabei de dizer parece que inventar confissões americanas é simples: basta ir lá levantá-las que estão por todo o lado, como fez Shepard, mas não é assim tão simples, porque os americanos são os primeiros a negar a própria realidade. Ora, escrever sobre uma realidade que nega a própria realidade é duro, mas João Lameiras e João Ramalho Santos conseguiram. Faltando-lhes apenas dar voz a Samuel Pastor, afinal o único capaz de ter um discurso eloquente, obcecado, daqueles que fazem dos automóveis verdadeiros mitos.

(Para quando a tradução do livro de David Gartman, Auto Opium, A Social History of American Automobile Design? Páginas e páginas cheias de análises e explicações das influências sociais, culturais e políticas do automóvel desde os anos 50 até meados dos anos 90, abordando-o também como elemento estético indissociável da arte popular americana. Será que alguém era capaz de fazer a mesma coisa em português, mesmo que centrada apenas na 4L e nos anos 70 portugueses? O que me leva a perguntar se de facto nós saberemos o que é a cultura popular? Se teremos uma ideia remota do que é isso que na versão portuguesa tanto nos repele, mas na versão americana nos atrai? Perguntas que em última análise me levam a perguntar se de facto, insisto no de facto, nós sabemos verdadeiramente o que é a cultura popular?)

Aos 16 anos passei a olhar para o avô como um velhadas meio senil à procura da adolescência perdida, por sua vez, ele passou a olhar para mim como um traidor, em boa parte porque eu tinha confessado que o meu automóvel preferido era o Nash Airflyte de 50. Eu não resistia passar pelo Nash sem o tocar, é claro que não era um Nash Airflyte da série Ambassador, mas um da série 600, com carroçaria em aço toda soldada, formando uma peça brutal, uma daquelas banheiraças com capot maior que o habitáculo, suspensão de molas helicoidais e interior salão de jogos. Era o carro dos meus sonhos, com o qual imaginei fazer todas as viagens do mundo, a Badajoz também. José Carlos Fernandes deve conhecer as diferenças entre a série 600 e a Ambassador, e também sabe que quando se produz muito é necessário controlar aquilo que sai da fábrica. Não se pode lançar uma série nova e logo a seguir uma antiga, principalmente quando a qualidade dos automóveis novos é superior à dos produzidos há quatro anos atrás, acontece o mesmo com as ilustrações deste livro, são anteriores ao José Carlos de hoje.

A adolescência acabou e a relação com o meu avô tornou-se distante, afastei-me dele e os meus interesses voltaram-se para outras coisas, uma delas foram os acidentes. No espaço de 2 anos tive 14, sempre como acompanhante, o último dos quais contra um camião do lixo, acabando no hospital. Ali estava eu com uma perna partida, a pensar na merda que afinal era andar de automóvel, quando recebo a visita do meu avô pronto para fazer um ajuste de contas: qual era o meu carro preferido, se era um Ford ou não?

Após várias insistências do meu avô, entre elas dois murros na perna partida, lá lhe respondi que era dos Ford que eu gostava. O meu avô levantou-se enfurecido, deu meia volta e saiu pela porta do quarto, deixando-me com a maior e mais breve sensação de alívio que alguma vez senti, porque voltou e pediu-me mais. Eu não tinha nada a perder, não queria deixá-lo triste e a pensar que eu não gostava dos Ford, por isso respondi-lhe que o meu carro preferido era o Ford Torino de 74, o mesmo de Starsky e Hutch, e o único que eu usaria para viajar pelos Estados Unidos.

A homenagem estava feita, ele podia morrer feliz. Severino Nunes continua sem saber quais são as diferenças entre um clássico americano e uma das nossas camionetas de excursão, compradas em segunda mão a países de Leste. Nunca descobriu a suavidade de um clássico americano na estrada, nem o conforto dos assentos para viagens longas ou a ninharia que custam, mas sabe que a camioneta de excursão é o que é, uma fatalidade portuguesa. Hoje eu não faria todas as viagens do mundo num Nash Airflyte 600 ou num Ford Torino, talvez escolhesse o Mehari… pensando bem, escolheria o Isetta de 1954.

Quem conhece o cartaz de F. Mosca não hesitará em dizer que o Isetta é o carro perfeito, a confirmar está a loira de salto alto e Chanel verde, com ramo de girassóis e prenda na mão direita, que diz sorrindo e convidando a entrar com a mão esquerda, Prego, s’accomodi! Juntos eu, a loira, o reformado Severino Nunes e o cadáver do meu avô seguiríamos ao pôr do sol para Bresso, Milão, cheios de alegria a ouvir Sonha de Madalena Iglesias e comentando a falta de espaço que há nos carros europeus, tudo sem reparar que o Isetta promete 85 km hora, e só chega aos 60, gasta o mesmo que uma scooter, mas abana todo, é o que é.

Nota: O cartaz de F. Mosca pode ser encontrado na biblioteca Forney em Paris, quem gostar de postais pode procurá-lo nas Edições F. Nugeron. Uma nota adicional para a cor de Crossroads, demasiado vibrante quando comparada com os originais.

Crossroads
Texto de João Ramalho Santos e João Miguel Lameiras
Ilustrações de José Carlos Fernandes
BaleiAzul

Texto publicado na revista Quadrado, Volume 3, Nº1, Janeiro de 2000.