Durante uma entrevista, e respondendo a uma pergunta de rotina, James Joyce disse que para se ser escritor é preciso aguentar com tudo. Mesmo a fechar este ano passei a acreditar nisso, quando um crítico me disse que só existiam dois, vá lá, no máximo, três autores de banda desenhada em Portugal.
Sem tirar os olhos do café que estava a chegar à mesa, ele explicou-me que só o x, y e z são autores, porque recebem à página e se esforçam para lançar livros em festivais. Azar nítido, percebi logo ali que eu não era autor, nem eu, nem quem publica em fanzines [duvidosos, sublinhou] ou revistas especializadas [com boa aparência, chamou à atenção, mas de pouca visibilidade]. Sem saber muito bem o que dizer, perguntei-lhe quantos críticos de banda desenhada existiam em Portugal, e ele, sem se engasgar com o café, respondeu-me que há o a, o b, o c, o d, o e e o f. Sem dar muita importância ao facto dos autores terem ficado com as últimas letras do alfabeto e os críticos com as primeiras, comentei que dos críticos a, b, c e d só o a e o b escreviam críticas com regularidade e eram pagos para isso. Mais, que o c, o d e o f eram considerados críticos, apesar de terem mais capacidades para a escrita criativa do que para outra coisa qualquer. Mais ainda, onde é que se podia encaixar no meio disto tudo o e, aquele que se limita a fazer recensões. Não conseguia perceber isso, nem como é que existiam tantos autores-que-afinal-não-eram-nada-autores, mas que o a, o b e d, só para citar alguns, eram críticos-sim-senhor-e-sem-sombra-para-dúvidas. Ou seja, como é que se podem eliminar autores e poupar críticos, assim, sem mais nem menos. Quem tem de provar alguma coisa são os autores, foi a estranha, curta e grossa resposta que eu ouvi do crítico, isto como se os autores não pudessem exigir nada dos críticos, nem sequer um português bem escrito. Sem se dar ao trabalho de me dar mais explicações, levantou-se, pediu-me dinheiro para o café e foi-se embora sem se despedir. Angustiado de morte, limitei-me a pensar que Joyce tinha razão.
Texto publicado no site da Bedeteca, secção Dossiê, Dezembro de 2003.