Pussey!

Daniel Clowes é o narrador omnipresente de Pussey!, encarregando-se, como os espíritos que visitaram Mr. Scrooge na véspera da noite de Natal, de nos mostrar o passado, o presente e o futuro de Dan Pussey, um autor de bd. Assim, a história transporta dentro de si uma moral premonitória e fatalista que terá de ser levada a quem ainda não caiu em desgraça… a Dan Pussey? Não, Daniel Clowes não pretende corrigir Dan Pussey, ele é apenas o meio, a personagem manipulada ao limite, ele é a mensagem para todos os que pretendem seguir carreira como autores de bd.

É claro que isto, só fará algum sentido para aqueles leitores que realmente vivem num país onde existe uma indústria corporativista de bd, os norte-americanos. Para os outros, como nós, fica uma leve sensação de que algumas das situações pelas quais Dan Pussey passa não nos são de todo estranhas, isto porque todos nós conhecemos uma ou outra história onde um autor se esforçou para passar a ser levado a sério, os colecionadores compram comics como quem compra acções da bolsa, um velho e acabado autor tenta sacar uns cobres acusando outro de plágio, e onde um outrora promissor autor se transformou num mero ajudante de uma nova editora.

Se isto faz parte das coscuvelhices que ouvimos e das notícias que lemos algures, também é certo que tudo isto é a vida de Dan Pussey.

No contexto da obra de Daniel Clowes este livro não escapa muito ao seu estilo habitual, onde reina o humor distorcido, o sarcasmo, a ironia (em coisas muito subtis, como por exemplo os seis novos títulos da editora onde Dan Pussey trabalha: Army-Bots, Infinity Hombre, MuscleMaster, The 10-Year Robot War, New Age Krystyll e Marionette Squad *) e a sordidez, só que em Pussey! a coisa não fica por menos. É que tudo está tão bem manipulado que apenas quem se aventurar um pouco na história da bd americana perceberá que este livro é um pequeno labirinto cheio de surpresas.

Senão vejamos: na pág. 34 (e na continuação do discurso de um agradecimento…) Dr Infinity conta que nos anos 50 fez um “taking over” a uma pequena editora, Suspenseful Publications, especializada em horror comics. Foi aí que se interessou pela ideia de editar bd para leitores mais adultos, e homenageia publicamente Gil Dickens pela sua contribuição talentosa, à data, como autor do género. Nessa mesma página viajamos até ao passado, o ano é o de 53 e vemos Dr. Infinity pedir a Gil Dickens que seja mais arrojado no desenho “- Dickey! I told you I want to see the eye ripped out of the socket! What is this?”, depois há uma pequena discussão onde de um lado está a oportunidade comercial e do outro a ética moralizadora, Gil termina dizendo que não gostaria que os seus filhos lessem comics com imagens violentas, ao que o Dr. Infinity lhe responde “- That is your perrogative, Mr. Dickey!” e ponto final: ele é o editor, ele é quem manda.

Ao virarmos a página, vemos novamente Dr. Infinity no presente e no preciso momento em que fala de como a indústria dos comics foi devastada por aquilo a que ele chama “uma inquisição dos tempos modernos”, onde ele e os autores eram tratados como criminosos. Voltamos ao passado. Era McCarthy, um advogado defende Dr. Infinity perante alguém, argumentando que ele não tem culpa nenhuma da violência que existe nos comics: a culpa é dos autores, são eles que assinam as histórias. A situação pode mesmo ter acontecido, não com Dr. Infinity, é claro, mas com muitos outros editores da altura.

Tudo por causa de um livro publicado em 1954, “Seduction of the Innocent”, da autoria de um tal Dr. Frederic Wertham que documentou e provou que a culpa para a crescente delinquência juvenil estava na bd, e mais, especificou onde estava a raiz do mal dando-lhe o nome de “crime comics” — todos os comics que fossem westerns, aventuras na selva, super-heróis, histórias policiais e de horror. Com este livro, Wertham conseguiu que o senado americano, através do comité de investigação para a delinquência juvenil, iniciasse uma investigação conduzida pelo senador Kefauver (os olhos pelos quais vemos o advogado de Dr. Infinity), conhecida por “The Kefauver Hearings”.

Depois de ter ouvido todos os acusados nessas audiências, Kefauver condenou a indústria de bd da altura pelos seguintes crimes: desacreditar a literatura infanto/juvenil, utilização de imagens com conteúdo violento e marcadamente sexual(!). No final dessas audiências quem mais sofreu foram os dois últimos géneros — políciais e de horror — com a criação do Comics Code Authority, a censura para a bd americana. Esta instituição só deixou de ter poder em meados da década de 70.

Não será muito difícil para quem tiver edições antigas encontrar no canto superior direito um símbolo (em forma de selo) atestando a aprovação para publicação pelo C.C.A., segundo as regras do código estabelecido. Se bem se lembram Dr. Infinity disse, “- Dickey! I told you I want to see the eye ripped out of the socket…”. Ora desse código, exaustivo, de elementos catalogados por Wertham existia um, o mais célebre, que dava pelo nome de “the-injury-to-the-eye-motif” e que era explicado pelo próprio nestes termos: “Being a very frequent injury […] the-injury-to-the-eye-motif is an outstanding example of the brutal attitude cultivated in comicbooks – the threat or actual infliction to the eyesof a victim […]. This detail, occurring in coutless instances, shows perhaps the true color of crime comics better than anything else[…]”, espantoso, não é? Se não acha, vejamos como acaba o texto, “It has (a tal “injury-to-the-eye-motif”) no counterpart in any other literature of the world, for children or for adults.”…

Para se ter uma noção de tudo isto basta, mais uma vez, pegar nos comics do período acima referido e verificar que por algum tempo as histórias, em particular as de terror, não estão assinadas pelos autores. É no entanto importante referir, para que não fique nenhum mal entendido, que o reconhecimento popular do autor é um fenómeno recente numa indústria corporativista como a americana, ou qualquer outra, quer por parte dos leitores quer por parte da própria indústria.

Daniel Clowes consegue com este tipo de “alçapões históricos” tornar-se sórdido, é que se numa primeira leitura tudo parece ser motivo para umas boas gargalhadas, numa segunda é para corar de vergonha, isto a menos que saibamos gozar com a nossa própria condição. A figura de Dan Pussey é uma prova disso, do sentido de humor auto-crítico e corrosivo de Daniel Clowes, porque não há melhor exemplo vivo do que o do próprio autor.

Não quero dizer com isto que a história seja autobiográfica, pelo menos na totalidade, mas a verdade é que Dan Pussey herdou do seu autor o diminuitivo de Daniel e, quem sabe, uma alcunha transformada em apelido (?), um aspecto bonacheirão, um risco ao lado a terminar em franjinha, dentes proeminentes e, no geral, um arzinho de quem já fez uma perninha numa série cómica do princípio dos anos oitenta. Pussey! é um óptimo manual para quem está dentro do mundo da banda desenhada e ao mesmo tempo, um livro divertido para quem está fora dele e quer (ou só pode…) continuar assim.

* se considera estes nomes patéticos é porque nunca pensou realmente no sentido de nomes como Spawn, Daredevil, Wolverine, etc, etc.

Pussey!
Daniel Clowes
Fantagraphics Books – 54 pp, PB

Texto publicado na revista Quadrado, Volume 2, Nº4, Outubro de 1997.