Existem três pontos de charneira na teoria da bd: Essai de Physiognomonie, de Rodolphe Töpffer; Comics & Sequential Art, de Will Eisner e Understanding Comics, de Scott McCloud. Benoît Peeters pretende alcançar com este livro o mesmo objectivo e estatuto dos outros três, o de referência. Esse objectivo é demonstrado logo nas primeiras páginas, em que o autor nos dá a sua ideia do que deverá ser a teoria da bd, como é que pode ser feita e em que moldes.
Segundo Benoît Peeters, essa teoria deverá ser feita não só de exemplos práticos (como nos três casos citados), mas também de uma forte componente teórica. Isto pode parecer redundante, mas não é, porque de facto o que falta aos três livros é uma explicação mais acentuada, mais académica, mesmo intelectual, dos mecanismos que o meio tem. Este tipo de tratamento teórico é, neste momento, um dos mais urgentes ao meio, porque estamos sem dúvida alguma num período decisivo, porque de mudanças radicais, principalmente ao nível do tema e da narrativa, seguidos de perto pelo estilo, e onde toda a ajuda para repensar e redefinir o meio é necessária. Infelizmente uma coisa é certa, a bd é deficiente no que diz respeito a pessoas com a capacidade de formular e produzir uma abordagem intelectual capaz, uma visão que permita validar o meio, porque é teorizando que se dá validade e autonomia a qualquer actividade humana inútil.
Isto quer dizer que, por exemplo, sem um Reed ou um Arnhein, a pintura ou qualquer outra disciplina, senão mesmo toda a Arte, seria olhada apenas como um mero passatempo, uma coisa lúdica, recreativa e sem qualquer motivo ou objectivo de estudo e consideração aparente. Por outro lado, todos os livros sobre teoria da arte servem para fundamentar, explicar e julgar a própria arte, servem para percebermos se uma pintura é pintura-pintura ( isto partindo do princípio de que não existe a categoria de qualidade na Arte), e servem também, no melhor e no pior, para o próprio artista aprender a pensar sobre aquilo que faz. Ou não. É isto tudo que faz falta à bd, nela tudo emotivo e mal explicado, e se a bd sofre desse grave problema que é o de afirmação, isso deve-se em parte ao facto de quase não existirem pensadores dentro do meio, pessoas que peguem na bd e sejam capazes de descrever e apontar mecanismos, códigos, estilos etc de uma forma estruturada e inteligível, ou seja, e como já disse, de conferir ao meio autonomia.
A importância dos livros teóricos sobre bd não se prende apenas com essas mais valias, prende-se também com a melhoria e renovação do meio, porque mais depressa os autores perceberiam as suas deficiências e seriam capazes de as corrigir, poupando anos de prática ou, para os novos, vergonhosas estreias. Mais importante ainda, e esta é a parte mais positiva e estimulante, livros como estes ajudam a perceber melhor quais as potencialidades do meio, aplicá-las ou investir nelas, abrindo novos caminhos. Case, Planche, Récit – Lire La Bande Dessiné encaixa-se nesta última, porque abordada temas mais complexos como: a imagem isolada, concepções e finalidades compositórias de página, movimento e leitura.
Não estamos, apesar de tudo, perante um livro de iniciação. Os exemplos dados são na sua maioria europeus, com excepções para McCay, Eisner, Taniguchi, Ware e a dupla Gibbons e Moore, e quase todos contemporâneos, o que é digno de registo. Apesar disso, este livro tem dois pontos fracos, o primeiro prende-se com a linguagem, num estilo de discurso francófono, hermético e evasivo, que está desajustado no tempo, o segundo é a bibliografia, demasiado concentrada naquilo que há publicado no campo da bd, quando em muitos dos casos existe mais e melhor noutros lados. Veja-se o capítulo dedicado à imagem, a precisar de ser sustentado com autores como Ponty, Solso, Judd ou, o mais do que obrigatório nesta matéria: Arnheim.
Case, Planche, Récit – Lire La bande Dessiné
Benoît Peeters
Casterman – 144 pp, Cor
Texto publicado na revista Quadrado, Volume 3, Nº3, Maio de 2001.