Charles Saatchi

Gary Hume, Julian Schnabel ou Damien Hirst, qualquer um serve, porque todos os contemporâneos vão dar a Charles Saatchi, cuja actividade como coleccionador de arte só é comparável à do americano William Hearst nos anos 40 e à do rei Charles I em Inglaterra, onde Saatchi é conhecido por Charles II.

Apesar disso, Charles Saatchi não nasceu em Londres, e muito menos em Inglaterra, mas sim em Bagdad, no Iraque, de onde partiu para crescer a norte de Londres no seio de uma família judia. Charles nunca foi um aluno brilhante, muito pelo contrário, era um daqueles alunos apáticos, mais um, que vagueiam pelos corredores das escolas e ao qual nenhum professor é capaz de apontar qualidades ou um futuro promissor.

Desanimado com os falhanços académicos, abandonou os estudos e começou a trabalhar em publicidade. Em 1970, com 27 anos, tentou a independência profissional, criando a sua própria agência de publicidade com a ajuda do irmão mais novo e futuro sócio, Maurice. Elaboraram logo de início uma carta de princípios para a empresa: “1. Brutal simplicity of thought; 2. Creative hard sell, 3. Energy and experience; 4. Specialisation; 5. 100% Saatchi worldwide; 6. Our best Clients”, e que veremos que não só funcionaram para a empresa, mas também no percurso pessoal de Charles.

Na Saatchi & Saatchi, os irmãos dividem as tarefas e especializam-se, Charles toma conta da parte criativa e Maurice do negócio. A agência ganhou notoriedade excepcional alguns anos mais tarde, em 79, quando ajudou Margaret Thatcher a vencer as eleições contra ao partido trabalhista, com um cartaz onde apareciam centenas de desempregados à porta de um centro de emprego e uma única frase, no mínimo contundente: Labour Isn’t Working!. Tirando partido desta simplicidade brutal e da vitória de Thatcher, a carteira de clientes dos irmãos aumentou e com ela a própria agência, até porque Maurice ia comprando e absorvendo outras pequenas agências. Em 1989, a Saatchi & Saatchi transformou-se na maior agência de publicidade do mundo, seguindo à letra outro dos princípios: 100% mundial.

Isso permite a Charles retomar uma das suas paixões mais antigas – coleccionar arte, especialmente minimalista. A primeira obra que comprara, aos 20 anos, era um desenho de Sol Lewitt. O interesse pelos minimalistas desapareceu pouco depois de ter casado com Doris, uma americana que vivia em Londres, e que o levou a virar os seus interesses para o potencial da arte americana. O casal passa a visitar semanalmente Nova Iorque para comprar arte, e lá, duma só vez e em cada visita, adquire dezenas de obras de Julian Schnabel, Anselm Kiefer, Cy Twombly ou Joel Shapiro. A experiência adquirida permite a Saatchi apostar nos artistas certos, e estão todos ao alcance da sua energia financeira. A colecção torna-se bastante considerável e de reconhecida qualidade.

Essas duas vertentes permitem-lhe abrir, em 1985, uma galeria com o seu nome, com 900 metros quadrados, na Boundary Road. Coordenada por Jenny Blyth, entra definitivamente no roteiro artístico londrino ao convidar cerca de 1200 pessoas, na maioria bons clientes e bons críticos, para cada uma das suas sucessivas inaugurações, às quais o próprio Charles faz questão de nunca aparecer.

No início dos ano 90 acontecem duas reviravoltas. A Saatchi & Saatchi não resiste à ambição demonstrada por Maurice durante os anos 80, década em que comprou literalmente dúzias e dúzias de pequenas agências de publicidade, e apresenta agora resultados negativos que rondam os 100 milhões de dólares. As convulsões internas resultam no afastamento de Maurice da direcção, mas Charles não abandona o irmão e os dois resolvem vender a parte deles na empresa e abrir outra, a M&C Saatchi, que num golpe exemplar de estratégia e arrogância fica a poucos metros da primeira. A segunda reviravolta é pessoal e acontece em 1990, Charles separa-se de Doris e casa com Kay Hartenstein1, o que o leva a perder todo o interesse pela arte americana e a voltar-se para trabalhos de novos artistas ingleses, principalmente para os que conheceu em 1992 numa colectiva realizada pelos alunos do Goldsmiths College, a Freeze.

A quantidade de obras que comprou a esses artistas permite-lhe montar uma exposição, a “Young British Artists I”, desde logo um sucesso mediático estrondoso. Sucesso esse que se deve em boa parte à relação conservadora que o público inglês em geral tem com a arte, encarando as obras de Damien Hirst, Marcus Harvey, irmãos Chapman ou Tracey Emin como puras afrontas artísticas e morais. A liderar o sentimento de indignação está Brian Sewell, crítico do Standard Evening que entre afirmações como “Driven by a childish determination to shock” ou “How utterly, utterly frightful!” e algumas escaramuças com artistas no meio da rua, vai tentando impor a sua visão conservadora de como é que a arte inglesa deveria ser. Apesar de tudo, a exposição resiste, o número de visitantes aumenta e os artistas representados afirmam-se, contribuindo para que Charles assuma algum protagonismo internacional como coleccionador e mecenas.

O reconhecimento definitivo surgiu em 1997 com a exposição “Sensation: Young British Artists from the Saatchi Collection”, na Royal Academy of Arts, para a qual selecciona trabalhos de yBa (young British artists) desde 1987, com escolhas que não diferem muito da primeira. A aclamação é geral e incondicional, dentro e fora de Inglaterra, fortemente apoiada e divulgada pela Flash Art e Art Forum nos meios artísticos exteriores. Um pormenor que terá contribuído para isso: Martin Maloney, um dos representados, escreve para as duas revistas. A “Sensation”, como fica conhecida, vai para o Hamburger Bahnhof de Berlim e logo de seguida para o Brooklyn Museum, arrastando público e muita polémica. A ideia de um Charles Saatchi coleccionador e mecenas 100% mundial afirma-se de vez.

Desde aí, Charles não parou de comprar, e também de ser acusado de manipulação e especulação. Os casos mais conhecidos são os de Simon Callery e Sandro Chia: o primerio era um desconhecido até saltar para a primeira página do The Independent, depois de Charles, num intervalo para almoçar, ter comprado uma exposição inteira de Simon por 32 mil libras; o segundo, o italiano Sandro Chia, viu o seu valor no mercado da arte subir e descer num estalar de dedos , tudo porque Charles comprou e vendeu duma só vez uma série recente do artista. Resultado prático: galeria e habituais compradores abandonaram Chia. É fácil de perceber que Charles Saatchi mantém-se fiel a outro dos seus princípios: “creative hard sell”.

Texto publicado na revista Ícone, Dezembro de 2000.


  1. Actualização: Charles casou-se com Nigella Lawson em 2003, o casal divorciou-se em Julho de 2013, a pedido dela, após uma séries de fotografias de uma agressão em público publicadas pela imprensa britânica em Junho do mesmo ano.