01.
É o pior de Jack Kirby e o melhor de Jean Dubuffet numa mesma pessoa. Daí que consiga perceber que fique a impressão de irregularidade para aqueles que não conhecem bem o percurso de Gary Panter desde meados dos anos 70 ou que só tenham conhecimento de alguns dos aspectos mais recentes de uma produção que é múltipla e descoordenada por definição. Uma característica que foi anulada na exposição que o Fumetto lhe dedica, através duma selecção demasiado coerente e toda em volta da série Jimbo. Eu não gostava que fosse assim, porque o Gary Panter tem coisas muito mais interessantes fora da banda desenhada.
02.
Quase todos me perguntam o que achei da exposição do Gary Panter, respondo-lhes que assim-assim, eles argumentam que o homem é punk, e eu limito-me a considerar ninguém é punk acima dos 50, muito menos quando têm barriga e usam uma mosca grisalha no queixo, como é o caso.
03.
Quando alguém pede um desenho ao Gary Panter, este faz questão de gritar, “Queres que te desenhe uma cobra muita maluca?!”, ou “Queres que eu te faça um caubói muito doido… queres?!”, ou ainda “Vou-te desenhar um cão muita maluco!” Os desenhos dele são tão riscados e tremidos que às tantas estes “muita maluca” ou “muito doido” parecem ser um pedido de desculpas, se são não convencem, porque há um miúdo que recusa um extraterrestre “muita doido” pela terceira vez. O Gary tenta chamar a mãe dele à razão, “Se ele não gosta de extraterrestres, eu posso fazer… um rapper muita doido!!!”, a mãe do miúdo diz qualquer coisa em alemão, o tom é ríspido, o miúdo contrariado pega nos extraterrestres, agradece e afasta-se puxado pela mãe, o Gary atrapalhado ainda tenta dar a volta por cima, “E lutadores mexicanos?!? Ele não gosta de lutadores mexicanos?!? É que eu posso fazer lutador mexicano muita maluco!“.
04.
O Gary quer saber como é que eu sou capaz de fazer coisas tão rápidas a pincel, e eu pergunto-lhe como é que ele não parte o aparo sempre que faz uma coisa “muito doida”, ele ri-se e aponta para uma caixa cheia de aparos prontos a usar em caso de acidente. Junto à caixa dos aparos há um lápis ilustrado a toda a volta com caras, digo-lhe que tenho dois iguais aquele em casa, comprei-os em 90 ou 92, mas estão novos, porque gosto tanto deles que não tenho coragem para os usar. Fica muito admirado e diz-me que foi ele quem fez a ilustração para os lápis. Mais: explica-me que foi um amigo em Nova Iorque que lhe arranjou o trabalho. Confesso-lhe que comprei os meus no Feira Nova de Braga, pergunta-me se o Feira Nova é uma papelaria, como não quero ferir de morte o orgulho do homem, respondo que sim meio envergonhado. Ele insiste, “Mas porque é que não os usas?!”, e eu repito, “Epá, Gary, porque são tão porreiros que não tenho coragem de os estragar!“, ele acaba por oferecer-me o lápis que tem, “Toma, podes usar este, porque já tá assim…” eu agradeço, ele ri-se, pega no aparo e assina na ponta do lápis. Fico a pensar se coloco o lápis ao lado do boneco que dança bhangra, e que é uma réplica em miniatura do próprio Balwinder Safri!, ou se ao lado da caixa da MGM com os melhores momentos da “Serenata à Chuva” em 8 mm, onde também tenho guardado um guardanapo de papel usado pela Debbie Reynolds.
05.
Vim até meio do caminho para o hotel a olhar para o lápis que o Gary Panter me deu e a pensar que era uma pena o guardanapo da Debbie Reynolds não estar assinado, o que é compreensível, porque eu aproveitei o facto de ela estar de costas para o roubar. Entre os prédios da rua, fui olhando para as montanhas cobertas de neve, depois para as flores dos canteiros e acabei por parar em frente a uma casa fabulosa, acreditei que estava num musical e que daqui a nada a Debbie Reynolds abria a porta, saltava para o passeio e desatava a cantar,
Summer, winter, autumn, and spring
Were there more than 24 hours a day
They’d be spent in sweet content dreamin’ away
Skies are grey! Skies are blue!
Morning, noon, and night-time, too
All I do the whole day through is dream of you!
Cheguei a saltitar de felicidade ao hotel.